2024: Interiores – Aline Setton – de 06/04/2024 a 27/04/2024

Aline Setton


06/04/2024 a 27/04/2024

Sobre a exposição

O fora pode ser sempre um dentro.

Outro sonho: no interior, que é o exterior, uma janela e eu. Através dessa
janela desejo passar para fora, que para mim é o dentro. Quando acordo, a
janela do quarto é a do sonho, o dentro que eu procurava é o espaço de fora.
(CLARK, Lygia)2

Em A Parede Cindida: Voyeurismo Doméstico3, a teórica da arquitetura Beatriz Colomina dedica-se a comparar a maneira pela qual os arquitetos modernos Adolf Loos e Le Corbusier concebem seus projetos a partir de uma relação entre o interior e o exterior e, no limite, pensam a produção e a circulação de imagens de suas arquiteturas. Pode-se dizer que Loos é mais conservador do que Corbusier: para ele, as janelas servem apenas para a entrada de iluminação e, muitas vezes, em seus projetos, além de opacas e cobertas por cortinas, elas têm seu acesso negado (ou dificultado) por mobiliários embutidos. Nos espaços concebidos por ele, os olhos de seus habitantes voltam-se para o interior, e qualquer vista do mundo externo passa obrigatoriamente pela casa. Criam-se espécies de camarotes – ou “caixas de teatro do mundo”, apropriando-me dessa bela metáfora de Walter Benjamin, também citada por Colomina –, e seus habitantes são, ao mesmo tempo, atores e espectadores das cenas familiares. Em uma breve busca por fotografias dos interiores de edificações projetadas por Loos, deparamos com a iminência da chegada de alguém que habita o espaço4.

Nas casas de Le Corbusier, há uma condição inversa: as janelas nunca estão cobertas, e tudo está disposto de modo a convidar o sujeito para o espaço exterior. Para ele, as edificações poderiam ser compreendidas como sistemas fotográficos, câmeras apontadas para a natureza, nas quais as janelas seriam as lentes. Não importava, para ele, onde tais arquiteturas poderiam se instalar: elas eram sempre concebidas como móveis, assim como câmeras fotográficas, que emolduram fragmentos de paisagem do seu entorno. Para Le Corbusier, habitar tem íntima relação com “habitar” a câmera e colocar-se como um sujeito que domestica e domina o exterior. Nas fotografias de edificações do arquiteto, sobretudo aquelas produzidas por ele, temos a impressão de que o indivíduo que habita aquele espaço acaba de se retirar, e vemos seus pertences cuidadosamente colocados5.

Nas arquiteturas e nos arranjos espaciais concebidos por Aline Setton, as janelas assumem funções que estão entre aquelas sugeridas por Loos e por Le Corbusier. O espaço interno e o externo são contiguos: o fora e o dentro, assim como o perto e o longe, são separados por planos meticulosamente organizados pela artista. Em um mesmo trabalho, assumimos a posição do espectador, que mira o

1 Apropriação da célebre citação de Le Corbusier: “Le dehors est toujours un dedans” (O fora é sempre um dentro). De maneira intencional, quis deixar explícito um tom menos categórico, tendo em vista que essa afirmação pode ser compreendida a partir de inúmeros autores e será discutida no texto de maneira não conclusiva.

2 CLARK, Lygia. Do Ato, 1965. Datiloscrito. Disponível em: https://portal.lygiaclark.org.br/acervo/59274/do-ato. Acesso em 23 de maio de 2024.

3 COLOMINA, Beatriz. “A parede cindida: voyeurismo doméstico”. In: COLOMINA, B. Arquitetura, Sexualidade e Mídia. VAN BODEGRAVEN, Marian Rosa; AL ASSAL, Marianna Boghosian (org.). São Paulo: Escola da Cidade/WMF Martins Fontes, 2023. 4 Beatriz Colomina faz uma magistral análise da maneira pela qual Loos percebe as mudanças na metrópole e as funções da

arquitetura. A autora descreve ainda a relação do arquiteto com a moda, ressaltando a divisão de gênero relativa aos usos dos espaços: para ele, o exterior da casa deveria se “assemelhar ao smoking, uma máscara masculina; como o eu unificado, protegido por uma fachada impecável, o exterior é masculino. O interior é o cenário da sexualidade e da produção, tudo o que dividiria o sujeito no mundo exterior” (COLOMINA, B., 2023, p. 44).

5 A autora também faz interessante relação do autor com a moda.

interior da habitação em seus inúmeros detalhes, e a do ator, que participa dos mesmos; somos ainda confrontados com paisagens distantes que capturamos com nosso olhar fotográfico. As janelas, para Setton, são mais do que operadores de visibilidade e invisibilidade da paisagem: são portais para espaços labirínticos que existem a partir da justaposição de fragmentos espaciais advindos de tempos distintos.

O procedimento criado pela artista em suas composições revela a maneira pela qual as novas mídias influenciam a criação e a concepção dos espaços – fenômeno ao qual Le Corbusier estava atento quando propunha compreender a casa como máquina fotográfica. Setton localiza, tanto em livros de arquitetura e história da arte quanto na internet, imagens de espaços interiores e exteriores. Retirados de seus contextos, tais fragmentos imagéticos passam a integrar composições arquitetônicas improváveis e hiper-realistas. Com exímia precisão geométrica e realismo, cria-se certo desconforto no espectador, que não espera ser traído pelos pontos de fuga e pela perspectiva, elementos que fundamentam historicamente a educação do olhar no Ocidente. Os trabalhos de Setton escancaram a dimensão de virtualidade intrínseca à arquitetura, e, ao mesmo tempo, as superícies sedutoras da pintura, que retratam esses espaços impossíveis, podem apontar para a proliferação e a superficialidade da produção de imagens na contemporaneidade. Diante da beleza e do rigor das composições, é quase impossível não pensar na função da arquitetura e das cidades contemporâneas como simulacros e objetos de produção e circulação de imagens: o ideal contemporâneo de cidade perfeita se relaciona tanto com as facilidades tecnológicas da smart city6 quanto com imagens espetaculares de torres espelhadas e iluminadas que atraem likes em redes sociais7.

Vale retomar ainda a ideia de suspensão temporal presente nas composições da artista: diante da impossibilidade de identificarmos de onde foram retirados os fragmentos espaciais, tem-se apenas o espaço-tempo presente do espectador. É inevitável olhar para as imagens produzidas a partir de uma perspectiva contemporânea, tal que suas obras poderiam ser compreendidas pela lógica da tela de computador, no qual, após dias intensos de labuta do usuário, inúmeras janelas de natureza e tempos distintos convivem. A simultaneidade e a justaposição são elementos fundamentais do mundo digital e constitutivos do trabalho da artista. Ao suspender o tempo-espaço dos fragmentos, estaria Setton provocando uma espécie de glitch na nossa compreensão arquitetônica do espaço-tempo?

O glitch é uma interrupção temporária que desafia a linearidade do tempo e nos permite imergir em um estado de desconcerto. Para autores como Legacy Russel8, tomar para si esse conceito poderia incentivar o reconhecimento de imperfeições, erros e desvios da norma, que muitas vezes são reprimidos ou considerados indesejáveis socialmente. Na era digital, em que a tecnologia e as mídias sociais desempenham papéis significativos na formação da cultura, o glitch possibilitaria até a subversão de narrativas dominantes e o questionamento do binarismo de gênero. É interessante olharmos para o trabalho de Setton como uma espécie de glitch na maneira pela qual percebemos e habitamos os

6 BRIA, Francesca; MOROZOV, Evgeny. A Cidade Inteligente: Tecnologias Urbanas e Democracia. São Paulo: Ubu Editora, 2020.

7 No momento em que escrevo este texto, vejo um vídeo sobre a Willy Wonka Experience, em Glasgow, Escócia. O site oficial do evento, ilustrado com imagens geradas por inteligência artificial, prometia “uma viagem recheada de criações maravilhosas e surpresas encantadoras por todos os lados”, com projeções e efeitos visuais. A “experiência” toda era, na verdade, um galpão extremamente precário, sem nenhuma das atrações divulgadas. Os visitantes ficaram tão enfurecidos que fizeram o evento fechar. O ocorrido me parece um bom exemplo para pensarmos a cidade contemporânea e sua espetacularização.

8 LEGACY, Russell. Glitch Feminism: A Manifest. Londres: Verso, 2020.

espaços que, em sua maioria, permanecem regulados pelas estruturas de poder essencialmente masculinas. Setton é uma mulher, que subverte e constrói espaços todos seus9.

Nesse sentido, gostaria de terminar este texto com uma breve reflexão sobre o processo de produção do espaço. Comecei discutindo, a partir de Beatriz Colomina, a maneira pela qual Adolf Loos e Le Corbusier, dois dos mais importantes arquitetos modernos do mundo ocidental, concebiam a relação dentro e fora de suas construções. Em seguida, eu me dediquei ao trabalho de Setton e à sua proposição para o espaço: em Interiores, as composições da artista formam uma grande instalação, de modo que os painéis pivotantes, tão característicos do espaço do Fonte, deixam de ser apenas suporte para as telas e se integram aos planos oblíquos das composições da artista; já as telas se comportam como paredes que recortam e criam outros espaços de experiências. Ao realizar suas obras, estaria Setton produzindo também o espaço? Penso ser importante declarar que sim. Diante de um mundo ainda desenhado e concebido por (e para) homens10, os trabalhos da artista têm o papel fundamental de reivindicar, de forma sutil, o lugar de outros corpos nas paisagens urbanas e de criar geografias que possam escapar à nossa imaginação primeira.

9 WOOLF, Virginia. Um Teto Todo Seu. Rio de Janeiro: Antofágica, 2022.

10 KERN, Leslie. Cidade Feminista: A Luta por Espaço em um Mundo Desenhado por Homens. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2021.

OLHANDO POR TRÁS DAS NUVENS, a obra de Aline Setton

Conheci a Aline por acaso, me mostraram umas imagens de uns trabalhos em acrílico e pedi para ir ao atelier imediatamente. Depois de mais de 50 anos curtindo, estudando e acompanhando artistas, exposições e quando possível frequentando os ateliers, acabei por desenvolver um olhar que me permitiu identificar os grandes artistas já bem no comecinho, raramente para não dizer nunca, errei. E foi assim, cheguei ao atelier e a Aline começou a mostrar o que tinha. Tudo muito bom, tudo original, tudo com uma visão muito particular das questões da Arte hoje. Não acreditei que uma mocinha tivesse tanta potência, mas aí lembrei de outras, que igualmente conheci bem no comecinho: Ana Maria Tavares, Dora Longo Bahia, Jacqueline Leirner, Leda Catunda, Marina Salem, Vania Mignone, Ligia Clark, Vera Rodrigues, Regina Silveira, Monica Nador, Ana Elisa Egreja… todas perfeitas já nas primeiras obras.

Foi isso que me espantou, a vida se renovando, de novo ali estava vendo mais uma grande artista em seu comecinho, a vida se repetia. Mas, sempre fica uma dúvida: será mesmo, não foi primeira impressão, a obra terá sequência etc ? Foi quando a Aline me convidou para uma performance em uma mini galeria escondida em uma travessinha em Pinheiros. Fui com o pé atrás, afinal, tirando a Abramovic quem ainda faz performance ? Pouca gente e de qualquer forma não é o acontecimento que foi há décadas atrás, quando apareceu este conceito. Aline dançava, com um colant sem cor, com suas esculturas ! Seu corpo esguio navegava, dialogava com uma escultura de madeira feita de vários braços, integrados entre si por parafusos. Uma surpresa, um silêncio, um acontecimento ! Junto as esculturas vídeo e fotos, todo material girando sobre o mesmo assunto. Espetacular, nunca imaginei que iria ver performances depois daquela hoje longuincua época. Mas vi, e das boas.

Fora isto tem as pinturas, quase pinturas, todas usam um tom esmaecido, quase pastel, como que fugindo do esplendor da pintura e reduzindo-a a um mero suporte de suas idéias. Olhando mais detalhadamente, contudo, se percebe um cuidado extremo com o toque do pincel, que aqui cria um todo contínuo, que em se olhando bem varia, tão delicadamente, que pode passar desapercebido de um olhar menos atento. Ali desenha-se uma sombra sutil de plantas, paisagens, expostas sobre fundos brancos enigmáticos. E de repente aparece a construção formal, geométrica, arquitetônica do espaço. Em cada elemento geométrico acontece alguma coisa, aqui é uma coluna, cujas pastilhas, uma em cada cor levemente diferente, enganam o olhar. Ali é um canto, uma dobra no espaço, uma perspectiva.

Tudo isto de uma forma discreta, despretensiosa, onde a atenção ao detalhe é quase que obsessiva e ao mesmo tempo, desencanada. Fica claro que apesar de levar o mister super à sério, se sente uma certa non chalance, um certo ar de leveza, como se não quisesse atribuir a obra muita importância. Ela te engana, exige um olhar atento, culto, informado para se revelar em toda sua beleza. Fazia anos, desde as moças acima citadas que não aparecia ninguém com esta potência, com uma linguagem nova, que trafega deslizando pela escultura, pela performance, pelo vídeo etc.

Junto com alguns poucos novos artistas, trata-se de uma aposta certa em uma valorização exponencial. Falo porque vi acontecer – principalmente em uma época que no começo da vida, comprar arte sempre era muito difícil – muito, apesar dos preços que se pediam eram hoje irrisórios. Ainda assim consegui algumas obras que com as décadas acabaram por se tornar valiosíssimas, como certamente vai acontecer com as obras desta moça, sucesso certo.

Oswaldo Pepe trabalha como comunicador para instituições e empresas, já há mais de 40 anos; organizou eventos culturais desde a época de ditadura e ao longo dos anos reuniu uma coleção que de certa forma conta a história da Arte Contemporânea aqui entre nós nos últimos 50 anos.

Abertura
06/04/2024 – 11h às 16h

Exposição

de 08/04/2024 a 27/04/2024
de Qui. a Sex. – 14h às 19h
Sáb. – 11h às 15h

Sobre o artista

Aline Setton (n. 1993, Brasil)

Aline Setton é uma artista visual brasileira que vive entre São Paulo e Toronto, Canadá. Frequentou o curso de arquitetura e urbanismo na Universidade Escola da Cidade, SP, Brasil (2013) antes de se mudar para a Califórnia, nos Estados Unidos, onde estudou Cinematografia,

na Academy of Art (2015) e Studio Arts, na Sierra College (2016). Foi aprendiz de pintura do artista Oliver Vernon (2016) e participou do acompanhamento de projetos no Hermes Artes Visuais, orientado por Carla Chaim, Marcelo Amorim e Nino Cais (2019).

Seus estudos em arquitetura e vivências em diferentes países aparecem como bases na sua pesquisa. Desenvolve trabalhos caracterizados por composições labirínticas, efeitos de simultaneidade e diálogos entre corpo, objeto e espaço.

Participou de residências artísticas, entre elas a residência Fonte no Brasil (2022) e Córtex Frontal em Portugal (2018). Os seus trabalhos foram apresentados na exposição individual Lupa, na Ap’Arte, Porto, Portugal (2019) e em exposições coletivas, incluindo: Mar, Rio, Fonte, Galeria Karla Osório, Brasil (2023); Tropi-X – Brazilian Art in Canada from the 70’s to

the present, Canadá (2023); a Bienal Internacional de Arte de Gaia, Portugal (2021); Making Spaces, Sur Gallery, Canadá (2020).

Em 2022, criou a instalação Plan View: A look into the eye of a building para a praça Nathan Phillips Square, Toronto City Hall, Canadá. Sua obra faz parte de coleções como Museum London, Canadá e Museu Nacional de Belas Artes, RJ, Brasil.